O Seringueiro
(Tipo popular nas Regiões Norte e Centro-Oeste)


Além da seringa e da castanha, o seringueiro tira da mata quase tudo o que precisa para viver. Tira a madeira de paxiúba para as casas, a palha de aricuri ou jarina para os telhados, o terreno  de roçado para o arroz, feijão, milho e mandioca, com a qual faz farinha também. Os insetos e raízes alimentam as galinhas, porcos, perus e patos, às vezes até alguma vaca e umas poucas cabeças de gado. A mata dá caça variada e farta – veados, porcos-do-mato, pacas, antas e peixes – é também o jardim de infância das crianças, que se divertem com armadilhas, e o berço do universo de lendas dos seringueiros. Todo seringueiro já foi assombrado pelas almas dos que morrem, pela mãe d’água que encanta os viventes e os leva para o fundo dos rios, ou pelo caboclinho da mata, um indiozinho pequeno que é o dono das caças e persegue e castiga aqueles que caçam sem necessidade de carne fresca. 
Há também o São João Guarani, que misturou o seringueiro João, da “colocação” Guarani, com o São João da Igreja Católica. João seringueiro foi um dos mártires dos desmandos dos antigos seringalistas, ou seja, patrões. Magro e fraco, foi obrigado a carregar muito peso e morreu. Tempos depois, dois amigos seus perderam-se durante uma caçada, e fizeram uma promessa à alma de João para encontrar o caminho de casa. Imediatamente acharam a cova de João e dali sabiam o caminho de volta. Cumpriram a promessa e fizeram uma capela, no meio da mata, aproximadamente 52 quilômetros de Xapuri (Acre).
A Fala dos Seringueiros
  • Varadouro – caminho principal no meio do mato, uma espécie de rua na floresta, que liga uma colocação à outra. É uma picada estreita em que só passa uma pessoa de cada vez.
  • Colocação – posse geral do seringueiro, incluindo casa, roçado e estradas, cada colocação possui em média três estradas, mas pode chegar a 18. 
  • Varação – atalho estreito entre dois varadouros. 
  • Manga – um caminho sem saída, em geral usado para ir a uma seringueira fora da estrada. Pode levar também a uma colocação, que nesse caso passa a se chamar “vai quem quer”. 
  • Estrada – caminho onde estão as seringueiras, que sai da casa do seringueiro e volta para o mesmo lugar. Cada estrada possui de 120 a 150 seringueiras. 
  • Seringal – conjunto de várias colocações. 
  • Rodagem – estrada onde passa carro. 
  • Ramal – equivalente às estradas vicinais. 
  • Empate – técnica para impedir o desmatamento. Os seringueiros se reúnem e vão para a área a ser desmatada. Se levam armas, deixam-nas escondidas para o caso de serem agredidos. No lugar indicado, fazem pressão sobre os peões e exigem a presença do gerente. Em geral, os seringueiros levam as famílias para os empates, que começaram por volta de 1975/76. Nunca houve um conflito durante os empates. O primeiro ocorreu em Cachoeira. 
  • Cambito – galho torto usado pelo seringueiro para juntar o mato e cortá-lo. 
  • Terçado – grande facão usado para abrir caminho, quebrar castanha ou matar animais. 
  • Faca de seringa – usada para cortar a seringueira. 
  • Madeira – seringueira. 
  • Sarnambi – bola de borracha que, acesa, serve de tocha para andar no mato à noite.


O seringueiro Chico Mendes

Francisco Alves Mendes filho nasceu em Seringal Cachoeira (Acre) em 1944 e morreu em Xapuri (Acre) em 1988. Chico foi o sexto seringueiro assassinado em 1988 em Xapuri.
Seringueiro desde os nove anos, Chico registrava as mortes e os acontecimentos importantes nos seringais. Registrou a fundação da cooperativa dos seringueiros e a criação da primeira reserva. Considerou que muitas reuniões com órgãos do governo eram uma “enrolação”, e, nos dias 28 e 29 de outubro, antecipou a própria morte. Soube de um grupo articulado em Brasiléia, formado pelos fazendeiros Alvarino, Darli (já foragidos), Crispim, Coronel Chicão, Quirino, Luizinho e Zezinho Assen, Antônio Pequeno, o comandante da PM, capitão Tisson, e o juiz dr. Heitor (de Brasiléia). No dia 29, Alvarino foi visto. O último registro da agenda é do dia 18 de dezembro, cinco dias antes de sua morte, e diz apenas: “Reunião de delegados (sindicais). Assembléia Geral”.

Foi vereador pelo PMDB e um dos fundadores do PT em seu Estado em 1980. Membro da direção da CUT e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri.
Defendeu uma ocupação econômica da Amazônia que não agredisse os recursos naturais e respeitasse os interesses dos trabalhadores da região. Nesse sentido, atuou junto a entidades internacionais (BID, Banco Mundial) responsáveis por empréstimos ali aplicados pelo governo brasileiro.
Em 1987 recebeu da ONU o prêmio “500-Globais”. 
Essas lutas, aliadas à defesa da reforma agrária, levaram alguns fazendeiros locais a assassiná-lo. O crime teve repercussão mundial.
 

A memória do líder

Na casa de Chico Mendes, que virou museu, cinco seringueiros revezam-se a cada semana para guardar a memória do líder assassinado. Azul de janelas rosas, amarela por dentro, de madeira, a casa tem quatro peças, e um banheiro externo, a uns três metros de distância, ao lado do qual tocaiaram-se os assassinos. Dentro da casa, medalhas e diplomas de prêmios internacionais (da ONU e da Sociedade por um Mundo Melhor, de Nova Iorque), títulos de personalidades do ano (Acre) e de cidadão do Rio de Janeiro. Na estante, alguns best-sellers e a história da República Brasileira, em numerosos volumes.
Depois da morte, o acervo foi ampliado com cartas, poemas publicados em sua homenagem e um painel proclamando que “Chico está vivo no verde das matas”. Há, ainda, miniaturas de vinho recolhidas nas viagens e um retrato a óleo pintado na Bolívia.
A agenda de Chico Mendes, que vem sendo conservada como uma relíquia – traz os telefones de vários contatos do líder, anotações pessoais e avaliações feitas por ele durante seus encontros. A leitura da agenda permite imaginar a roda-viva cada vez mais acelerada que foi absorvendo Chico. Papéis pessoais, inclusive traços de seus últimos dias: uma passagem para o Rio que não chegou a ser usada e os cartões de Natal que comprou para enviar aos amigos com os dizeres: “Vamos colher os frutos da amizade e semear os ideais de paz e prosperidade que sonhamos”.
 


 

Raimundo

Os sucessores de Chico

Raimundo e Julio são os sucessores de Chico Mendes. Raimundo, 43 anos, moreno magro de pernas compridas e olhos mansos, é o herdeiro natural. Julio, também moreno, 34 anos, é liderança nova, que o próprio Chico estava formando, pensando na sucessão no sindicato.
Com a notícia do assassinato, Julio ficou com uma coisa atravessada no peito, sentindo, como contou depois, um choque maior do que quando morreu sua mãe e lembrando quando era menino e andava montado nos ombros do amigo Chico Mendes. Ao mesmo tempo, “sentia uma preocupação danada”, por ter de assumir a responsabilidade de um trabalho do qual só participava de uma parte: naquele momento ele passava a ser o novo presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri – três mil associados, dois mil seringueiros.
Raimundo, no momento, se encarrega da pregação política na mata. “Mataram o Chico, mas não mataram suas idéias. A nossa luta continua, ainda mais do que antes. Temos de ficar firmes. Se eles pensam que matando Chico acabaram com tudo, nós vamos mostrar que agora lutaremos mais ainda”, vai repetindo ele de seringal em seringal.
Raimundo mostra a “pimenteira”, ou seja, a “colocação” ou a casa de Pedro Teles, que tem dez estradas de seringa, três famílias de moradores, criação de pequenos animais, uma escola e a madeira cortada para fazer um posto de saúde. Ele quer mostrar o trabalho de Chico Mendes, principalmente essa escola e o posto de saúde que vai nascer, e que permitirão, um dia, que o seringueiro deixe de ser um “mané de trouxa”, um ninguém, um não-cidadão. Porque era esse o sonho de Chico Mendes, conforme conta Raimundo, cruzando a mata virgem por uma picada estreita, muitas vezes no meio da lama, chamada “varadouro”.
 

Desmatamento

De Xapuri a “pimenteira” são duas horas e 50 minutos a pé. No ritmo dos seringueiros anda-se seis quilômetros por hora. Eles param às vezes à margem de algum igarapé para beber água num copo feito de folha dobrada. Raimundo explica como os igarapés estão ficando secos por causa do desmatamento. Antes, eles enchiam e formavam alagações já em outubro e novembro, quando inicia o inverno amazônico, a estação de chuvas. De dois anos para cá, o verão – ou seca, de abril a setembro – ficou mais quente e os igarapés só começam a alagar em janeiro.
O desmatamento descobre a nascente dos rios, secando os igarapés. Atrapalha a vida da floresta, inclusive prejudicando a caça, age mesmo de longe. Há locais onde a mata está intocada, “embora tenha seringueiros há mais de 100 anos. Sem floresta, as seringueiras não existem. Nem as castanheiras, que são um símbolo da inutilidade das leis ecológicas gastadas em gabinetes. Há uma lei que impede o corte de  castanheiras, enquanto o desmate atinge outras espécies. Mas a castanheira, mesmo preservada, protesta e pára de produzir se não houver mata em volta. 
 

O transporte comum da região
para sair de Xapuri

Descrição de uma casa 

A “colocação” de João Batista fica no caminho de “pimenteira”. João está no roçado. Em sua casa todos entram sem cerimônia. A casa é sobre estacas, pois a altura de meio metro evita cobras e permite que a criação se abrigue embaixo da casa quando chove. O chão de ripas de paxiúba tem frestas que ventilam e permitem cair o cisco, deixando a casa sempre limpa. O teto é de cavacos, o fogão, à lenha, luz de lamparina, rede no quarto. Não há banheiro nem água encanada, mas tem um cachorro, chamado “Empresa”. A casa, de três peças, praticamente não tem móveis. Uma pequena penteadeira comprada em loja, com espelho e tudo. Sobre ela, o rádio enorme e antigo, marca Semp, o mesmo que se encontra em quase todas as casas de seringueiros. É pelo rádio que se escuta o Correio do Seringueiro, um programa de recados que atravessa os seringais informando doenças, casamentos, e dando recados pessoais: “Já comprei o remédio e custou três mil cruzados, estou esperando alguém para levar”, é um deles.
 


Ilustrações de José Lanzellotti escaneadas do livro: Brasil, Histórias, Costumes e Lendas.
Grande Enciclopédia Larousse Cultural - São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1988.
Textos de Cynthia Peter, Revista IstoÉ Senhor/1009, 38-45, 18/1/1989.
Fotos: Graciela Magnoni.
 
 
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