A dança-mãe do espetáculo maranhense

Brincante bate as matracas - Foto de Carlos Humberto TDC

Com a mesma caracterização histórica que originou o folguedo no Brasil, no Maranhão porém o bumba-meu-boi diferenciou-se das demais formas nacionais, adotando um conteúdo ritualístico próprio, diversificando seus estilos e sotaques; criando novas formas de apresentação, de músicas, de adereços e pautando sua sobrevivência pelo gosto popular, sem, no entanto, desrespeitar a lenda que dá origem ao auto.

Ao contrário de outros locais em que é apresentado entre o natal e a festa de reis, portanto de dezembro a janeiro, no Maranhão o bumba-meu-boi faz parte do ciclo das festas juninas, dedicadas a Santo Antonio, São João, São Pedro e São Marçal; um tempo que coincide com o verão e com o período da colheita. Isto porque, antes de serem consagradas aos santos populares, estas festas eram pagãs na Roma antiga, ligadas às colheitas, e onde eram cultuados vários deuses e, dentre eles, o Imperador Constantino.

Só com a conversão do Imperador ao Cristianismo, através do batismo, é que o Papa Gregório I (590-604) transforma o calendário romano em calendário cristão, ligando a cada dia um santo.  Como, presumivelmente, São João nasceu no solstício de verão, ele ficou com o dia 24 de junho. Não é à toa que alguns autores assemelham a origem do boi às festas do solstício de verão da Roma Antiga, ligadas às colheitas e realizadas entre os dias 24 e 25 de junho do calendário romano, mais tarde transformado no calendário cristão como festa de São João Batista - não por acaso, o protetor do boi.

É no alargamento das fronteiras sociais e dos limites culturais que se dá o reavivamento dos contatos coletivos, que se dá o contexto da festa, e dentre estas, as festas de santos que são realizadas como pagamento de promessas feitas para pedir uma boa colheita, para curar uma doença, para conseguir dinheiro, para o filho passar de ano na escola, para a filha arranjar um marido. É um tempo sagrado, que transpassado para o bumba-meu-boi, funciona como o tempo de preparação.

Esse tempo sagrado também inicia o ciclo ritualístico com os ensaios que vão do sábado de aleluia até o sábado próximo, ou que coincide com o dia de Santo Antonio; prossegue com o batismo a 23 de junho, véspera do dia de São João - inicio do período junino da temporada de apresentações, cujo ápice são as vésperas do dia de São Pedro e de São Marçal, respectivamente 29 e 30 de junho, e depois continuam até setembro ou outubro, quando acontece a matança do folguedo.

Tal como ocorre ainda hoje em Portugal, e principalmente na região Norte deste pais, o período junino maranhense é o tempo das fogueiras, dos balões, das bandeirinhas, dos ariris, dos arraiais, das brincadeiras de roda, dos fogos de artifícios, das simpatias casamenteiras, dos bailes a céu aberto, das comidas e bebidas típicas, dos namoros à meia luz, dos arranjos e casamentos, dos santos populares, das estórias e narrativas, lendas e mitos, das noites de lua cheia, das estrelas cadentes...

Por exemplo, no lugar Parceiros de São João, região do Ribatejo, em Torres Novas, alguns costumes permanecem, como a queima de alcachofra pelas moças para encontrar namorado/marido: "alcachofra florida / florida te apanhei / Se o meu amor me quiser bem / amanhã de manhã florida te acharei".  Os rapazes confeccionam uma coroa de cravos, escrevem uma mensagem e colocam à porta da moça com quem querem namorar. Outro costume é uso da água para beber, tomar banho ou lavar a casa, nessa época, numa alusão ao batismo de São João. Mais do que isso? Só no São João do Porto onde não faltam a sardinha e o pimentão assados, o alho porro, o martelo, o caldo verde, o vinho de garrafão, os manjericões, os fogos de artifício, o chouriço, o cabrito e o café cimbalino.

No Maranhão, mais precisamente em São Luís, as ruas enchem-se de luzes e cores, de alegria, de danças, de noites que se confundem com os dias, de sons exuberantes, exóticos e sensuais, de arraiais que proliferam a cada esquina, denunciando a presença de bailes, forró, reggae, concursos, bingos, jogos da sorte, leilões, shows e das adivinhações para todos os gostos.

É assim que, ao lado de danças como Quadrilha, Tambor de Mina, Tambor de Crioula, Portuguesa, Espanhola, Do Vaqueiro, Coco, Cacuriá, Bambaê de Caixa, São Gonçalo e Da Fita, o bumba-meu-boi aparece como uma dança à parte, como a dança-mãe de todos os bailados, o núcleo gerador da identidade maranhense; o espetáculo mais representativo do período junino, o único que não pode faltar nos arraiais, clubes, associações, residências ou na rua, onde a festa acontece.  É o que inicia e é o que termina a programação de cada local, levantando poeira, movimentando os mutucas¹ turistas e nativos, o que anima e chama o povo.

É a figura do boi, sua imagem e identidade, que serve de base para propagandas e publicidades turísticas e governamentais; como motivo de inspiração de músicas populares, de reggae, forró, samba, merengue e baião; para slogans de campanhas públicas; para programas eleitorais; para vender artesanato, como decoração de terreiros e arraiais; para divulgação da imagem do Maranhão; para organização de shows, exposições e atos beneficentes; para programas e páginas especiais de jornais, rádios e TV's durante todo o ano.

A identificação do bumba-meu-boi como a dança-mãe é um fenômeno recente, depois que os rebanhos² puderam sair dos seus terreiros³ para brincar e se apresentar em toda a ilha, nos anos 70. Alguns fatores contribuem para a sua popularização: a ida do Boi de Pindaré ao Rio de Janeiro, levado pelo governo para apresentações públicas e gravação do seu primeiro disco; a gravação da música Boi da Lua, de César Teixeira, no disco Bandeira de Aço; a criação do programa Raízes pelo radialista José Raimundo Rodrigues; as apresentações fora de época para turistas, dos grupos de Apolônio Melônio e Madre Deus; a expansão dos grupos de orquestra; a organização em associações culturais e em federações folclóricas, definem um novo papel para o folguedo.

Há, dessa forma, um processo de identificação coletiva que se solidifica nos finais dos anos 70 e início da década de 80, quando ocorre a inclusão de mulheres na brincadeira e quando passa a ser interessante dançar o bumba-meu-boi porque isso dá status. Já na década de 60 as mulheres participam do bumba-meu-boi em papéis secundários como mutucas ou, em raros casos, como caboclas rajadas, mas nunca no cordão, porque isso é coisa de homem.
Elas acompanham os namorados, amantes, maridos, irmãos, amigos, filhos e netos na organização do grupo, confecção das roupas e adereços, guarda de chapéus, bebidas e instrumentos ou como torcedoras, indispensáveis para o sucesso do folguedo. No final da década de 70 e inicio de 80, passam a disputar o mesmo espaço dos homens e a assumir responsabilidades na produção do folguedo como diretoras das sociedades folclóricas, mas também como brincantes de cordão, vaqueiras e amas.

É o tempo em que aparecem as variações modernas para competir de igual para igual com os grupos mais antigos, aumentando a popularidade e a empatia social pelo folguedo. A empatia, no entanto, não é gratuita. Ela é resultado da diversidade dos estilos e gostos estéticos que caracterizam o espetáculo de cada grupo que, apesar das semelhanças gerais, mantém diferenças sutis que os tornam único, às vezes pela riqueza das roupas, às vezes pelo ritmo mais ou menos acelerado, ou ainda às vezes pelo tipo de adereço utilizado.
Dessa forma, é possível afirmar que não existe um único grupo igual a outro, de um total de mais de cem em atuação no Maranhão. O que significa; ao mesmo tempo, dizer que o bumba-meu-boi é capaz de atender ao gosto mais exigente, de alegrar a mais insossa das festas; de satisfazer a mais ferrenha das críticas.

É importante observar que as regras básicas do bumba-meu-boi continuam sendo obedecidas, mas cada novo grupo marca sua presença por inclusões ou exclusões estéticas, por inovações de guarda-roupa, por intensificação ou moderação dos sons, por criação de outros personagens ou inclusão de novos instrumentos ou ainda por modificações de linguagem. É a marca que define um grupo de outro grupo, dentro de um contexto maior que os identifica pelo gênero.



1- Mutuca: pequeno inseto também chamado de picopil, tuiuba e ziquizira, que ferroa o gado para se alimentar e descansar. No bumba-meu-boi são os participantes que acompanham o grupo, ajundando na distribuição de comida, bebidas e remédios, e na guarda de roupas e adereços dos brincantes. Forma uma espécie de fã-clube do grupo e é composto pelas namoradas, mães, pais, primos, sobrinhos, amigos, netos, maridos e esposas dos brincantes, podendo tornar-se brincantes substitutos ou eventuais quando um brincante não pode dançar.

2- O Rebanho é outro nome dado aos grupos sobretudo dos sotaques de matraca e da ilha. Não por acaso, o termo significa o coletivo de gado. Foi usado por Nietzsche ao analisar as confrarias religiosas cristãs, cujo objetivo principal é a assistência mútua, o sentimento comunitário que ele chamou de formação de rebanho: os fortes aspiram a se separar, os fracos a se unir.

3- Terreiro é o local de produção e apresentação do folguedo. Historicamente é também o local sagrado, o território de preservação das regras simbólicas, onde se estabelece o continuum cultural dos cultos, dos rituais. No Maranhão, Os povoados da Maioba, Maracanã, Iguaíba, Ribamar, Tijupá e os bairros do Caratatiua, João Paulo, Madre Deus, Floresta, Vila Passos, Fé em Deus e Liberdade são conhecidos como terreiros tradicionais. Até a década de 70 eram lugares distantes, isolados e periféricos, sem muito contato com o centro da cidade.



Mídia e experiência estética na cultura popular: o caso do bumba-meu-boi / Francisca Ester de Sá Marques. - São Luís: Imprensa Universitária, 1999.
As fotos laterais de fundo foram escaneadas do livro citado acima. À esquerda: O compasso da Zabumba; à direita: o miolo e o seu boi.
Brincante bate as matracas - Foto de Carlos Humberto TDC - Escaneada da Revista Geográfica Universal nº 131 de outubro de 1985
 
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