Lendas do Rio São Francisco

Caboclo-d’Água
É um gigante que mora no lugar mais profundo do rio, numa gruta de ouro. Tem a mania de perseguir, sem dó, os barqueiros. Vira as embarcações e também afugenta os peixes, para prejudicar os pescadores. Tem um couro tão duro, que não adianta nada lhe dar tiros: as balas não penetram. Quando os barqueiros se sentem perseguidos, oferecem um pedaço de fumo ao monstro. Ele fica contente e os deixa em paz. Os pescadores costumam pintar uma estrela embaixo do barco, para afugenta-lo.

Guarapiru, chefe de uma tribo de índios das margens do Rio São Francisco, gostava de visitar a cidade dos brancos. Divertia-se tanto lá, que decidiu mudar-se em definitivo.
Apesar da oposição de sua família, Guarapiru quebrou seu arco e flechas, jogou-os longe e partiu, levando apenas a rede onde dormia.
Caminhando junto ao rio, seguiu para a cidade.

A noite chegou e, como estava cansado resolveu dormir ali mesmo e entrar na cidade de manhã, pois também não era muito seguro a um índio aparecer numa cidade à noite.
Procurou uma árvore onde pudesse colocar a rede, deitou-se e adormeceu, sonhando com a cidade, tão diferente do lugar que deixara.
Horas depois, já ao romper do dia, foi acordado por uma voz forte que cantava uma estranha canção. Ficou curioso, levantou-se e foi ver quem estava cantando.
Viu um gigante, de pé sobre uma enorme pedra no meio do rio, os braços estirados na direção do sol nascente. Prestando mais atenção, o moço percebeu, sob a água, uma enorme gruta de ouro. Era a casa do gigante. Conhecendo a mania dos brancos pelo ouro, Guarapiru pensou: “Vou guardar bem o lugar. Mais tarde, quando eu fizer amizade com os brancos, organizarei uma expedição e voltarei aqui. Conseguirei uma boa quantidade de ouro e, em troca, serei um chefe entre eles”.
Depois de sair dali, com todo o cuidado para não ser visto pelo gigante, retirou a rede e segui para a cidade.
Como o índio era muito simpático, não tardou a conseguir vários amigos entre os brancos. O que mais lhe valeu, porém, foi sua habilidade na caça e na guerra. Participou de diversas batalhas e lutou com tanto conhecimento e valentia, que logo foi nomeado oficial dos exércitos reais.
Se um de seus irmãos o visse agora, não poderiam reconhecer no oficial bem fardado, cheio de pose e orgulho, o humilde Guarapiru.
Concluiu que era chegada a hora de buscar o ouro do gigante e se tornar chefe dos brancos. Já tinha um plano em mente.
Tratou, portanto, de organizar uma expedição. Tão logo revelou que sabia onde encontrar ouro em grande quantidade, apareceram tantos interessados em acompanha-lo que ele pôde escolher, à vontade, os que achou mais indicados.
Estava em plenos preparativos, quando foi procurado por uma velha índia sua conhecida e que também vivia na cidade.
- Ouça o que vou dizer, meu filho, pediu ela. É um aviso e um conselho. Não vá em busca daquele ouro.
Ele achou graça:
- Por que? Não vá dizer que existe algum feitiço!
- Não brinque com isso, prosseguiu a índia. A esta hora, o Caboclo-d’Água já sabe de sua intenção. Se você se aproximar muito de lá, não escapará à morte.
Desta vez, ele riu até não agüentar mais.
- Que é isso? Então, não sabe quem sou? Não têm conta os combates que participei. Não sei quantos foram os inimigos que tombaram sob meus golpes, primeiro de tacape, depois de espada. Jamais recuei diante do perigo!
- Sei que você é valente, disse a índia. Valente contra as feras e contra homens. Mas nunca enfrentou o sobrenatural. Não há quem possa com o Caboclo-d’Água. Ouça o meu conselho: desista dessa idéia.
Guarapiru agradeceu e se despediu com um sorriso de superioridade.
Na tarde do mesmo dia, a expedição partiu rumo à gruta do gigante, onde chegou ao cair da noite. Acamparam à beira do rio e ficaram esperando o amanhecer.
Amanheceu um dia festivo: sol brilhante no céu muito límpido, aves cantando, flores se abrindo. Os homens começaram a se preparar. Nisto, alguém estranhou a ausência do chefe da expedição. Os homens se espalharam pelo lugar, gritando o nome do chefe. Nada.
Depois de muita procura, resolveram fazer uma última tentativa, no fundo do rio. Alguns homens mergulharam e encontraram o corpo de Guarapiru sob umas pedras, quase enterrado no lodo do rio. O Caboclo-d’Água apanhara Guarapiru e o arrastara para as profundezas das águas...
 
 

Mãe-d’Água.
Espécie de sereia que vive no Rio São Francisco.
Para os barqueiros, o rio dorme quando é meia-noite, permanecendo adormecido por dois ou três minutos. Neste momento, o rio pára de correr e as cachoeiras de cair. Os peixes deitam-se no fundo do rio, as cobras perdem o veneno e a Mãe-d’Água vem para fora, procurando uma canoa para ela sentar-se e pentear seus longos cabelos. As pessoas que morreram afogadas saem do fundo das águas e seguem para as estrelas.
Os barqueiros que se acham no rio à meia-noite, tomam todo o cuidado para não acordá-lo. Se um barqueiro sente sede, antes de pegar a água do rio, joga nela um pedacinho de madeira. Se ele fica parado, o barqueiro espera, porque não convém acordar o rio: quem o fizer, poderá ser castigado pela Mãe-d’Água, pelo Caboclo-d’Água, pelos peixes, pelas cobras e pelos afogados, que não podem alcançar as estrelas.

Um barqueiro muito moço não acreditava em nada do que diziam sobre o rio.
Certa vez, ele estava numa venda bebendo com os companheiros, quando a conversa pendeu para tais mistérios. Ele ria de tudo. Ao ouvir, então, que era perigoso despertar o rio à meia-noite, quase se engasgou de tanta risada.
- Vocês são todos uns medrosos! Parecem crianças! Como é que uma pessoa sensata pode acreditar nessas coisas?
- Acho que não se deve brincar com o que não se conhece! – disse um deles.
O moço olhou para os companheiros com ar de superioridade:
- Escutem aqui. Não acredito nessas bobagens e não é só conversa, não. Se quiserem apostar comigo, tomo banho no rio à meia-noite, quando ele estiver dormindo.
Os outros ficaram horrorizados. Como era possível fazer tal aposta?
- Então? – continuou ele. Aceitam ou não aceitam? Já é hora de acabar com essas mentiras! Vamos!
Os companheiros reuniram-se numa roda e começaram a cochichar. Após alguns minutos, o mais velho dirigiu-se ao moço, que esperava, com ar zombeteiro:
- Nós somos da opinião que você não deve ir procurar tal perigo. Agora, se você insiste, nós aceitamos a aposta.
Como o moço insistiu, a aposta foi feita. O dinheiro ficou com o dono da venda e combinaram que o banho seria naquela noite.
A notícia correu depressa pelo lugar. Muitas pessoas procuraram o corajoso jovem, pedindo-lhe que desistisse de idéia tão perigosa; mas quem seria capaz de fazê-lo desistir?
Conforme o combinado, perto da meia-noite foram todos para o rio. Impressionados pela quietude do lugar, as pessoas mantinham-se quietas e mudas. O próprio desafiante sentia a influência do mistério que havia no ar, pois, estava calado e pensativo.
À meia-noite, um dos barqueiros pegou um pequeno pedaço de madeira e o atirou, com cuidado, às águas silenciosas. Todos os olhos estavam fixos no pedaço de pau que flutuava mansamente, sem sair do lugar.
- O rio está dormindo! – disse ele, num sussurro.
O moço preparou-se para mergulhar, sem dizer uma palavra, já arrependido do compromisso que assumira. Respirou profundamente, como que procurando a coragem perdida. Sabia que não podia esperar mais, sem que seus companheiros percebessem o medo que o dominava. Corajoso, controlou-se e saltou, quebrando o cristal das águas paralisadas e desaparecendo nas profundezas misteriosas.
Os barqueiros trocavam olhares de surpresa, pois acreditavam que ele desistiria no último instante.
O tempo foi passando e o moço não retornou à superfície. Os barqueiros olhavam com ansiedade o lugar onde ele desaparecera.
Quando julgavam confirmado o seu receio, as águas se abriram, deixando surgir a cabeça do corajoso mergulhador.
- É ele! – disse um dos barqueiros.
- Olhe que é algum afogado enraivecido, porque acordamos o rio! – avisou outro.
Era mesmo o rapaz que voltava, não havia dúvidas.
Entretanto, ele estava tão diferente, que seus amigos ficaram surpresos.
Falaram com ele, gritaram, chamaram.
Com o olhar vazio, ele ficou andando pelo barco, de um lado para outro, sem destino certo...
De repente, com um salto, atirou-se nas águas do rio.
Aconteceu tão depressa que ninguém pôde fazer nada e o moço desapareceu para nunca mais voltar.

Minhocão
Serpente gigantesca, fluvial e subterrânea, vivendo no rio São Francisco e varando léguas e léguas, por baixo da terra, indo solapar cidades e desmoronar casas, explicando os fenômenos de desnivelamento pela deslocação do corpanzil. Escava grutas nas barrancas, naufraga as barcas, assombra pescadores e viajantes. É a réplica da boiúna, sem as adaptações transformistas em navio iluminado e embarcação de vela, rivalizando com o barco-fantasma europeu. O minhocão é um soberano bestial, dominando pelo pavor e sem seduções de mãe-d’água ou sereia atlântica. 
Saint-Hilaire registrou o minhocão em Minas Gerais e Goiás, tentando a possível identificação científica fixou o depoimento dos barqueiros do São Francisco, em fins do séc. XIX: “É um bicho enorme, preto, meio peixe, meio serpente, que sobe e desce este rio em horas, perseguindo as pessoas e as embarcações; basta uma rabanada, para mandar ao fundo uma barca como esta nossa. Às vezes toma a forma de um surubim, de um tamanho que nunca se viu; outras, também se diz, vira num pássaro grande, branco, com um pescoço fino e comprido, que nem uma minhoca; e talvez por isso é que se chama o minhocão.”



Histórias e Lendas do Brasil (adaptado do texto original de Gonçalves Ribeiro). - São Paulo: APEL Editora, sem/data
Dicionário do Folclore Brasileiro / Câmara Cascudo .- Rio de Janeiro: Ediouro Publicações S.A. sem data
Ilustrações de J. Lanzellotti
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