Entes Fantásticos: Sudeste


Anhanga
Bradador
Canhoto
Cavalo de Três Pés
Cavalo Fantasma
Cavalo do Rio
Corpo-seco
Cramondongue
Cresce-Míngua
Gorjala
Gunucô
Homens dos Pés de Loiça
Lobisomem
Malasartes
Mão-de-Cabelo
Mãozinha-Preta
Mula-Sem-Cabeça
Mulher de Duas Cores
Onça Borges
Onça Cabocla
Onça-Maneta
Porca dos Sete Leitões


Anhanga
Anhanga e não anhangá, espectro, fantasma, duende, visagem.
Há Mira-nhanga, Tatu-anhanga, Suaçu-anhanga, Tapira-anhanga, isto é, visagem de gente, de tatu, de veado e de boi. Em qualquer caso e qualquer que seja, visto, ouvido ou pressentido, o anhanga traz para aquele que o vê, ouve ou pressente certo prenúncio de desgraça, e os lugares que se conhecem como freqüentados por ele são mal-assombrados.
Há também Pirarucu-anhanga, Iurará-anhanga, etc., isto é, duendes de pirarucu e tartaruga, que são o desespero dos pescadores, como os de caça o são do caçador. (Stradelli, Vocabulário).
É um dos mitos mais antigos do Brasil colonial, registrados pelos cronistas da época.
Os padres Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Fernão Cardim, disseram-no um ente malfazejo. Jean de Lery chamou-o aygnhan. Hans Staden, 1557, diz que os indígenas “não gostam de sair das cabanas sem luz, tanto medo tem do diabo, a quem chamam ingange, o qual freqüentemente lhes aparece.”
Outras definições poderão ser encontradas no Dicionário do Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo.  

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Bradador
Mito do interior de São Paulo e de Santa Catarina. Berrador, Barrulheiro, Bicho Barulhento. “Que ninguém ainda viu, porém, cuja voz se ouve à noite e que é tão perverso que mata aquele que o vir. É a replica brasileira à Zorra de Odeloca, à Zorra Berradeira do Algarve, responsável pelos gritos noturnos, como o argentino Kaparilo, de Santiago del Estero. O Bradador no Brasil ainda não tomou forma especial, ou não se decidiu pelas que lhe apontam, os assombrados ouvintes de seus berros horrendos.
Ver Gritador, Região Nordeste. 
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Canhoto
Nome do diabo, um dos mais populares e ligado, na maioria dos casos, aos acontecimentos
amorosos, seduções, bastardia. Seria Canhoto uma réplica católica do Asmodeu. Apesar do nome, canhoto, esquerdo, desastrado, é um demônio hábil na sua especialidade conquistadora. Luís Edmundo (O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis, 340, Rio de Janeiro, 1932): “O Canhoto! Monstro com o dom de transformar-se em cavalheiro capaz de seduzir a melhor dama, mas sem poder dissimular dois pés de pato, amplos e feios, duende explosivo que arrebentava, em cacos, diante de qualquer cruz, deixando, com o estampido muito grande, uma nuvem azulada e um cheirinho de enxofre.” 

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Cavalo de Três Pés
Animal assombroso que apavora as estradas desertas. Veiga Miranda alude a esse mito no
romance Mau-Olhado, 132, São Paulo, 1925. “É um cavalo sem cabeça, com asas e três pés, que aparece à noite nas encruzilhadas, correndo, dando coices e voando. (Bauru, São Paulo). É um cavalo sem a pata dianteira, que imprimi no barro três pegadas fundas, ataca os viajantes pelas estradas; e aquele que pisar em seu rastro será imensamente infeliz (Capital, São Paulo). É uma das transformações do Saci, em forma de cavalo de três pés, que corre pelas estradas assustando todos os que encontra (Ribeirão Preto, São Paul).” 

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Cavalo Fantasma
Ninguém o vê, mas o sente pelas passadas firmes. Uma luz clara, que dele emana, desenha na rua o seu vulto... As pisadas tornam-se mais fortes, assim como também a luz, à proporção que o cavalo se aproxima do observador (ou vidente). Diminui o clarão e o ruído dos passos, à medida que dele se afasta do animal. Passeia em certas ruas de Angra dos Reis, sempre a horas caladas de certas noites. 

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Cavalo do Rio
É um cavalo encantado que domina o rio São Francisco. Tem um poder quase igual ao Caboclo do Rio, perseguindo embarcações, virando-as, alagando a carga, empobrecendo aqueles a quem dedica sua antipatia. Ouvem-lhe os relinchos atordoadores e a bulha rítmica das patadas nas margens. O melhor amuleto afugentador do Cavalo do Rio é sua própria representação na proa da embarcação.
Noraldino Lima alude a essa crendice (No Vale das Maravilhas, 127, Belo Horizonte, 1925), falando na “embarcação, pesadíssima muitas vezes, com a guarnição, o toldo, a cordoalha, a carga e a cabeça de cavalo, recurva e grotesca, a desafiar, guiadora, os maus-olhados da viagem.” 

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Corpo-seco
Homem que passou pela vida semeando malefícios e que seviciou a própria mãe. Ao morrer nem Deus nem o Diabo o quiseram; a terra o repeliu, enojada da sua carne; e, um dia, mirrado, defecado, com a pele engelhada sobre os ossos, da tumba se levantou em obediência ao seu fado, vagando e assombrando os viventes nas caladas da noite (Leôncio de Oliveira, Vida Roceira, 12, citado por Basílio de Magalhães, 109). 
Mulheres que teve relações com o Demônio.
Veiga Miranda (Mau-Olhado, São Paulo, 1925): “Mulheres que viraram lobisomem, outras que dormiam com o capeta, sem saber, e depois apareciam com moléstias horríveis, descandando a pele toda. Essas relações com o Tinhoso trazia às vezes, em conseqüência, uma enfermidade estranha: o corpo da mulher ia definhando, ia diminuindo de tamanho, até ficar como o de uma verdadeira criança. A criatura possuída do demônio, se morria, era como lobo; nenhum bicho, nem os corvos, nem as formigas, nem as vespas, lhe atacaria o cadáver. Enterrada, à própria terra, anos e anos, repugnava operar a decomposição das suas carnes”. 
A tradição é européia. Os amaldiçoados e mortos sem penitência não serão desfeitos pela terra. O corpo seca. A deambulação é convergência do mito das almas-penadas. 

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Cramondongue
Assombração de Minas Gerais. “... e o Cramondongue, que é um carro de bois que roda à
disparada, sem precisar de boi nenhum para puxar.” (J. Guimarães Rosa, Sagarana, 174, Rio de Janeiro, 1946). 

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Cresce-Míngua 
É o fantasma mais popular, porque existe em todos os países conhecidos, e não há relação ou pesquisa folclórica que deixe de registrar sua amável presença assombradora. 
Em Caracas havia uma variante, o Enano de la Torre, que aparecia pequenino e sereno e
bruscamente ficava da altura da torre da catedral, fazendo perder os sentidos às raras testemunhas dessa elástica e sobre-humana personalidade. 
Entre os africanos que vivam no Brasil do séc. XIX e princípios do XX falava-se em Gunucô, que tinha a mania de aparecer num bamburral, estirando-se como um coqueiro e minguando como um pé de coentro.
Na capital de São Paulo o Cresce-Míngua é duplo. “São dois homens pequeninos que ficam nas estradas junto às porteiras. Quando alguém deles se aproxima, eles aumentam de tamanho, chegando a atingir oito metros de altura, e desaparecendo nas curvas. Consta que as pessoas que o vêem terão má sorte.”
Em Teresina (Piauí), na Praça Conselheiro Saraiva (antiga “das Dores”), há ou havia um Cresce-Míngua, chamado Não se pode.
Ver Num-si-pode, Região Nordeste. 

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Gorjala
“É um gigante preto e feio, que habita as serras penhascosas. A sua ferocidade lembra a do Polifemo de Homero, do qual é um descendente criado na imaginação sertaneja. Anda com as suas passadas imensas pelas ravinas, escarpas e grotões. Quando encontra um indivíduo qualquer, mete-o debaixo do braço e vai comendo-o às dentadas! Outrora, muita vez, quando um explorador desaparecia nos lugares ínvios, desconhecidos, por ter tombado num despenhadeiro profundo ou por ter sido devorado por índios, os seus companheiros afirmavam que o Polifemo Gorjala o devorara às dentadas...
Os seringueiros da Amazônia conhecem o Gorjala sob a forma do gigante batalhador, encouraçado de casco de tartaruga, chamado Mapinguari”. 

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Gunucô
É a divindade das florestas, quer dizer fantasma. Só aparece ou se manifesta uma vez por ano, salvo invocação para consulta prévia. Em suas manifestações, num bamburral, aumentando e diminuindo de tamanho, ele só aparece aos homens que o recebe com trajos especiais. Dá consultas, prevê os males e ordena observação de preceitos contra o que está para acontecer. É santo pertencente à tribo dos tapas, e o nagô dá-lhe o nome de Ourixá-ô-cô (Manuel Querino, Costumes Africanos no Brasil, 49). Obatalá ou Orixalá... é também invocado sob as denominações de Orixá-Guinam e Gunocô (Artur Ramos, O Negro Brasileiro, I, 32). 

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Homens dos Pés de Loiça
Assombração, fantasmas que aparecem na ilha Grande, restinga de Marambaia, Mangaratiba, no Estado do Rio de Janeiro.
“Senão eles verão os homens dos pés de loiça. 
- Que interessante! E quem são esses homens?
- Assombrações. Uns dizem que almas de pescadores que penam; outros, espíritos de náufragos desgraçados. Têm os corpos, a voz, os olhos, os cabelos iguais aos de qualquer outro homem comum, mas os pés... Ai de quem olhar para os pés!... Os pés são feitos de loiça, com brilho de luz. Quem ouvir o chamado dos homens dos pés de loiça, que não se vire, que não se comova e que não olhe para os seus pés. O remédio é fechar os ouvidos, apressar os passos na areia, fazer o padre-nosso e esconjurar o demo... 
- E se olhar? 
- Se olhar, dizem que fica louco. Teve um velho que morreu, chamado seu Colimério, que perdeu o juízo, porque avistou os homens dos pés de loiça... Hoje esse velho sempre é lembrado, para confirmar as maldições da lenda...” 

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Lobisomem
Mito universal, registrado por Plínio o antigo, Heródoto, Pompônio Mela, Plauto, Varrão, Santo Agostinho, Isócrates, Ovídio, Petrônio, etc.
Convergem para o mito a tradição religiosa das lupercais, realizadas em fevereiro em Roma, para onde as levara da Grécia o árcade Evandro. Os colégios dos Lupercos, Quintiliares e Fabianos tiveram um terceiro, Lupercii Julii, onde Marco Antônio era sacerdote-chefe. Numa lupercal tentou-se fazer de Júlio César rei. Em 494, Gelásio proibiu-a, mudando-lhe a feição para a solenidade cristã da festa da purificação.
Licantropo da Grécia, versiopélio em Roma, volkdlack eslavo, werwolf, verewolfe saxão, wahwolf germano, obototen russo, hamramr nórdico, loup-garou francês. 
Lobisomem, lobo-homem, lubizon, luvizon, lobinsón em Espanha, Portugal, espalhou-se por todo o continente americano.
Na África existe a tradição sagrada das transformações animais, homens-lobos, homens-tigres, homens-hienas, etc.
Na china e Japão o folclore aponta as versões múltiplas.
No Cancioneiro de Resende o poeta Álvaro de Brito Pestana cita: “Sois danado lobisomem”.
Em Portugal tem outros nomes: corredor (Minho); tardo (Paços do Ferreira). As fêmeas são: peeiras e lobeiras (Minho). São filhos de comadre e compadre ou padrinho e afilhada. Correm fazendo barulho. São pessoas que jamais engordam ou conseguem cores de saúde.
Oliveira Martins resume o mito europeu: “O lobisomem, vervolfe, loup-garou, voukodlak, dos alemães, franceses, eslavos, mito geral dos povos indo-europeus, é aquele que por um fado se transforma de noite em lobo, jumento, bode ou cabrito montês. Os sacerdotes do Sorano sabino, nos bosques da Itália primitiva, vestiam-se com as peles do lobo, animal do seus; a imagem confunde-se com o objeto na imaginação infantil, o sacerdote com o deus, a profissão com o fado.
Porventura o mito nasceu do tiro, assim como da crença vem a enfermidade, Os traços com que a imaginação do nosso povo retratou o lobisomem são duplos, porque também essa criatura infeliz, conforme o nome mostra, é dual. Como homem é extremamente pálido, magro, macilento, de orelhas compridas e nariz levantado. A sua sorte é um fado, talvez a remissão de um pecado; mas esta adição vê-se quanto é estranha ao mito na sua pouca generalização. Por via de regra, o fado é a moral - é uma sorte apenas. 
Nasce-se lobisomem: em lugares são os filhos do incesto, mas, em geral, a predestinação não vem senão de um caso fortuito, e liga-se com o número que a astrologia acádia ou caldaica tornou fatídico - o nº 7. O lobisomem é o filho que nasceu depois de uma série de sete filhas. Aos treze anos, numa terça ou quinta-feira, sai de noite, e topando com um lugar onde um jumento espojou, começa o fado. Daí por diante, todas as terças e sextas-feiras, de meia-noite às duas horas, o lobisomem tem de fazer a sua corrida, visitando sete adros (cemitérios) de igreja, sete vilas acasteladas, sete partidas do mundo, sete outeiros, sete encruzilhadas, até regressar ao mesmo espojadouro, onde readquire a forma humana. Sai também ao escurecer, atravessando na carreira as aldeias onde os lavradores recolhidos não adormeceram ainda. Apaga todas as luzes, passa como uma flecha, e as matilhas de cães, ladrando, perseguem-no até longe das casas...
Quem ferir o lobisomem, quebra-lhe o fado; outro modo herdará a triste sorte (Sistema dos Mitos, 294-295). 
Esses elementos criaram o lobisomem, o lubisome, no Brasil. Há modificações regionais. A
licantropia se determina pelo incesto ou moléstia, hopoemia.
Na noite de quinta-feira para sexta-feira o candidato se despe, e espoja-se numa onde os animais façam comumente a espojadura. Transforma-se em um bicho grande, bezerro de alto porte, com imensas orelhas, cujo rumor é característico. Procura sangrar crianças, animais novos e, faltando esses, a quem encontrar, antes do quebrar da barra, antes que o dia se anuncie. Para desencantá-lo basta o menor ferimento que cause sangue. Ou bala que se unte com cera de vela que ardeu em três missas de domingo ou missa-do-galo, na meia-noite do Natal. 
Há centenas de depoimentos, afirmando encontros e lutas pessoais com o lobisomem, o mais popular dos animais fabulosos, com a maior área geográfica de influência e crédito tradicional”.
No Geografia dos Mitos Brasileiros recenseei depoimentos sobre o mito e suas origens e
modificações clássicas. (ed. José Olympio, Rio de Janeiro, 1947); Jaime Griz, O Lobisomem da Porteira Velha, Recife, 1956; Raimundo Nonato, Estórias de Lobisomem, Pongetti, Rio de Janeiro, 1959, registrando casos de tradição oral em Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Ver Cumacanga, Região Norte. 

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Malasartes
Pedro Malasartes é figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos.
Convergem para o ciclo de Malasartes episódios de várias procedências européias, vivendo mesmo nos contos orais dos irmãos Grimm, de Hans Andersen, dos exemplários da Europa de Leste e do Norte. É o tipo feliz de inteligência despudorada e vitoriosa sobre os crédulos, os avarentos, os parvos, orgulhosos, os ricos e os vaidosos, expressões garantidoras da simpatia pelo herói sem caráter.
Em Portugal a mais antiga citação é a cantiga 1132 do Cancioneiro da Vaticana: chegou Payo de maas Artes, datando de fins do séc. XIV. 
Na Espanha ocorre em vários livros do séc. XVI, aproveitado literariamente, denunciando
popularidade total. Na Lozana Andaluza, de Francisco Delicado, 1528, cita-se Pedro de
Urdemalas. Tirso de Molina (Dom Gil de las Calzas Verdes, 2.º Ato, cena primeira) compara a heroína a Pedro de Urdemalas. Cervantes de Saavedra escreveu a Comédia Famosa de Pedro de Urdemalas (Madrid, 1615), onde o personagem vence pela arteirice imprevista, embora sem as liberdades morais dos contos populares. Ramón Laval informa que, em meados do séc. XVI, Alonso Jerônimo de Salas Barbadilho publicara a primeira parte do El Sutil Cordovés Pedro de Urdemalas
D. Francisco Manuel de Melo, no apólogo dos Relógios Falantes, cita a Pedro de Malas Artes. Pedro Malasartes, Malasartes, Urdemalas, Urdemales, Urdimale, Ulimale, Undimale, veio com portugueses e espanhóis para a América, onde se aclimatou e vive num vasto anedotário. 
O Prof. Aurélio M. Espinosa, da Stanford University, recolheu no Cuentos Populares Españoles, III, muitos episódios em várias províncias castelhanas. 
No Chile, Ramón Alvear Laval encontrou outros tantos, publicando um ensaio, Cuentos de Pedro Urdemales, Santiago de Chile, 1925, reimpresso em 1943. 
Maria Cadilla de Martinez fez semelhante em Porto Rico, Raices de la Tierra, Arecibo, 1941, sobre Pedro Urdemala, Pedro Urdiala ou Juan Animala.
No Brasil, Sílvio Romero publicou um conto, “Uma das de Pedro Malas Artes”, 5.º do Contos Populares do Brasil, o Prof. Lindolfo Gomes divulgou doze façanhas, Contos Populares, I, 64. No Vaqueiros e Cantadores, Porto Alegre, 1939, registrei o Pedro Malasartes na poesia popular sertaneja nalgumas aventuras famosas (Pedro Malasartes no Folclore Poético Brasileiro, 183) e comentei seis aventuras suas no Contos Tradicionais do Brasil, “Seis Aventuras de Pedro Malasartes”, 218, Rio de Janeiro, 1946) publicando um estudo sobre o personagem (“Histórias de Pedro Malasartes”, A Manhã, 11-6-1944, Rio de Janeiro). Jorge de Lima e Mateus de Lima publicaram (Rio de Janeiro, segunda ed. 1946) um volume, Aventuras de Malasartes, mas se trata de sucessos de Till Eulenspiegel, estranhos à literatura oral brasileira. Malasartes figura com Till Eulenspiegel pela identidade de alguns processos psicológicos e não pelos assuntos. 
Não coincide Malasartes com os temas de seus irmãos Gusman d’Alfarache, Lazarillo de Tormes, Marcos de Obregón, Estebanillo Gonzáles, El Buscón e outros eminentes da novelística picaresca espanhola. O episódio mais tradicional é a venda de uma pele de cavalo, urubu ou outro pássaro vivo, tido como adivinho, por anunciar o jantar escondido pela adúltera e expor o amante como sendo um demônio. É fusão de dois temas espalhadíssimos na Europa. O primeiro, Magic Cow-hide (K114, K1231, na sistemática de Stith Thompson), é elemento de um conto muito conhecido, The Rich and the Poor Peasant. Mt-1535 de Arne-Thompson, n.º 61 dos irmãos Grimm, divulgado por Andersen, Afanasiev, Gonzenbach. O segundo tema, identificação do amante como diabo e aproveitamento do jantar oculto, deu assunto a Cervantes para o entremez La Cueva de Salamanca (1610 ou 1611). Leite de Vasconcelos (Tradições Populares de Portugal, 294, Lisboa, 1882) registrou uma estória de “Pedro Malasartes e o Homem de Visgo”, que é o Tar-Baby dos folcloristas ingleses e norte-americanos, uma das mais espalhadas do mundo.
O Prof. Espinosa reuniu 318 variantes e há longa bibliografia na espécie (Os Melhores Contos Populares de Portugal, notas, 247, Rio de Janeiro, 1944). 
O nome de Pedro se associa ao apóstolo São Pedro, com anedotário de habilidade imperturbável, nem sempre própria do seu estado e título. Na Itália, França, Espanha, Portugal, São Pedro aparece como simplório, bonachão, mas cheio de manhas e cálculo, vencendo infalivelmente. Rodriguez Marín registra o Cinco Contezuelos Populares Andaluzes, onde o divino chaveiro é um exemplo de finura velhaca e simplicidade ladina. 
Pedro Malasartes é a figura humana que determinou um ciclo de facécias em maior quantidade, de exemplos e com atração irresistível (Amadeu Amaral, Pedro Malasartes, Tradições Populares, Instituto Progresso Editorial S. A. São Paulo, 1948; Lindolfo Gomes, Contos Populares Brasileiros, 80-97, Ed. Melhoramentos, São Paulo, s. d.; Luís da C6amara Cascudo, Contos Tradicionais do Brasil, “Seis Aventuras de Pedro Malasartes”, Améric Edit., Rio de Janeiro, 1946; Ramón Laval, Cuentos de Pedro Urdemales, Santiago de Chile, 1943 (na introdução estudo bibliográfico); ver a nota do Prof. Angel Valbuena y Prat prolongando a comédia Pedro de Urdemalas, de Cervantes de Saavedra, Obras Completas, 534, Ed. M. Aguilar, Madrid, 1946; Aurélio M. Espinosa, Cuentos Populares Españoles, 1.º, os contos, 407-420, III, bibliografia, notas, 130-140, Madrid, 1946, 1947). Aluísio de Almeida, O Vigarista Malazarte (contos e notas), sep. “Investigações”, n.º 28, S. Paulo, 1941. 

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Mão-de-Cabelo 
Entidade fantástica, de forma humana e esguia, tendo as mãos constituídas de fachos de cabelos. Anda envolto em roupagem branca. É o espantalho das crianças no sul da Província de Minas Gerais. (Da época em que Minas Gerais era uma Província).
Aos meninos que costumam mijar na cama era muito empregada esta frase caipira: “Óia, si neném mijá na cama, Mão-de-Cabelo vem te pegá e cortá minhoquinha de neném.”
(Vale Cabral, in Antologia de Folclore Brasileiro, 274). 

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Mãozinha-Preta
Assombração em São Paulo e que alcança a fronteira de Minas Gerais e o Estado do Rio de Janeiro. É uma pequenina mão negra, solta no ar, fazendo todos os trabalhos de casa, com uma rapidez, resistência e força miraculosa. Também, conforme ordens, castiga, bate, surra e termina a tarefa, quando lhe dizem: Chega, Mãozinha de Justiça!
Como a mão é negra, não castigava nem atormentava os escravos. Daí sua popularidade entre eles. (Cornélio Pires, Conversas ao Pé do Fogo, 146-148, 3.ª Ed., São Paulo, 1927; Folclore Nacional, Centro de Pesquisas Mário de Andrade, sep. da Revista do Arquivo Municipal, CXVII, 22, São Paulo, 1948).
Mãos errantes que castigam e acariciam, ajudam o serviço caseiro são conhecidas pela Europa e América (J. Leite de Vasconcelos, Tradições Populares de Portugal, 290-292, Porto, 1882). 

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Mula-Sem-Cabeça
É a forma que toma a concubina do sacerdote.
Na noite de quinta para a sexta-feira, transformar-se-a num forte animal, de identificação
controvertida na tradição oral, e galopa, assombrando quem encontra. Lança chispas de fogo pelas narinas e pela boca. Suas patas são como calçadas de ferro. A violência do galope e a estridência do relincho são ouvidas longamente. Vezes soluça como uma criatura humana. O encanto desaparecerá, quando alguém tiver a coragem de arrancar-lhe da cabeça o freio de ferro que leva. Dizem-na sem cabeça, mas os relinchos são inevitáveis.
Quando o freio for retirado, reaparecerá despida, chorando arrependida, e não retomará a forma encantada, enquanto o descobridor residir na mesma freguesia.
A tradição comum é que este castigo acompanha a manceba do padre, durante o trato amoroso ou punição depois de morta.
A mula corre sete freguesias em cada noite, e o processo para seu encantamento é idêntico ao do lobisomem, assim como, em certos Estados do brasil, para quebrar-lhe o encanto bastará fazer-lhe sangue, mesmo que seja com a ponta de um alfinete. Para evitar o bruxedo, deverá o amásio amaldiçoar a companheira, sete vezes, antes de celebrar a missa. Manuel Ambrósio cita o número de vezes indispensável, muitíssimo maior (Brasil Interior, 53). Chamam-na também “Burrinha-de-Padre” ou simplesmente “Burrinha”. A frase comum é anda correndo uma burrinha. E todos os sertanejos sabem do que se trata.
No México a dizem Malora, e se espalha pelo continente até a Argentina, sob os nomes de Mula Anima, Alma Mula, Mula sin Cabeza, Mujer Mula, Mala Mula, etc. E sempre com o elemento moral: “... todas estas versiones coinciden en un punto: hablan de una mujer casada, que desde hace más de diez años, mantiene realciones amorosas ilícitas, con a cura, la que en castigo de su falta, a determinadas horas de la noche, se convierte en Mula Anima”. (Rafael Cano, Del Tiempo de Ñaupa, 145, Buenos Aires, 1930). 
Num dos mais populares livros de exemplos na Idade Média, o Scala Celi, de Johannes Gobi Junior, há o episódio em que a hóstia desaparece das mãos do celebrante, porque a concubina assiste à missa (Studies in the Scala Celi, de Minnie Luella Carter, dissertação para o doutorado de Filosofia na Universidade de Chicago, 1928). 
Gustavo Barroso supõe que a origem do mito provenha do uso privativo das mulas como animais de condução dos prelados, com registros no documentário do séc. XII: ...mulam corporis mei... meo soprino, meam mulam, in qua ego ambulo (Sertão e o Mundo, 186). A mula era o animal das viagens regulares, ficando o cavalo encaparado para as batalhas. Alexandre Herculano faz a Rainha Leonor Teles dizer ao rei: “O teu donzel d’armas, Rei Fernando, segue com os outros pajens caminho de Santarém, montado no teu cavalo de batalha. Aqui só tens a mula do teu corpo para seguires jornada”. (Arrhas por Foro D’Espanha, 96, Geografia dos Mitos Brasileiros). 
Ver Cavalo-Sem-Cabeça, Região Centro-Oeste. 

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Mulher de Duas Cores
É uma assombração, visagem, fantasma, que aparece de dia, na luz do sol, nas estradas de Minas Gerais, fronteira com São Paulo, ou dentro das pequenas matas.
Veste roupa de duas cores, branco-preto, azul-encarnado, azul-amarelo, etc., e não fala, não canta, não resmunga. Limita-se a atravessar caminho, com passo surdo e leve, pisando sem usar o calcanhar, silenciosa, sem olhar para os lados nem para ninguém. Corresponde ao medo, miêdo português, nas raias de Espanha, espalhando pavor pela simples presença.
“Quando senão quando, passou rente comigo ua mulher estrambótica, muito magra, vestido de duas cor; pro lado direito era azul inteirinha, inté o rumo do nariz; pro lado esquerdo, amarela só; se o azul fosse mais tapado um quêzinho, a mulher tava do jeito de uma águia imperial. Carregava trouxinha de roupa debaixo do braço direito, e caminhava de pressa, quaji de carreira, mas porém só inté no meio dos pés, sem botá os carcanhar no chão”. (Valdomiro Silveira, Mixuangos, 207, Rio de Janeiro, 1937). 

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Onça Borges
Onça fantástica de uma zona mineira do rio São Francisco, alargando a área de presença até a região das fazendas de criar. 
Conta-se ter sido uma transformação do misterioso vaqueiro Ventura, não mais voltando a forma anterior pela covardia do companheiro, que não teve coragem de colocar na boca da onça um molho de folhas verdes, indispensável para o retorno ao humano. 
A onça Borges se tornou a mais violenta e afoita das onças e deu trabalho heróico para matá-la. Reaparece, às vezes, continuando as estrepolias contra o gado miúdo e graúdo.
Geografia dos Mitos Brasileiros, 411-415; Manuel Ambrósio, Brasil Interior, 30-50.  

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Onça Cabocla
Monstro encantado, que se metamorfoseia em gente, ou melhor, em velha tapuia. Alimenta-se de pessoas, tendo preferência pelo fígado e pelo sangue das vítimas; folclore norte-mineiro do vale do São Francisco. (Saul Martins, Belo Horizonte). 

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Onça-Maneta
É um animal fabuloso, caracterizado pelo rastro. Onça que perdeu uma das patas dianteiras. É de espantosa ferocidade, força incrível e mais ágil, mais afoita, mais esfomeada que outra qualquer de sua espécie. Aparece inopinadamente, atacando sempre rebanhos, caçadores, viajantes, num arranco desesperado e brutal, como se não comesse há muitos meses. Naturalmente a origem foi uma onça, que, ferida numa pata ou tendo-a decepada em luta, conseguiu fugir aos caçadores e da matilha de cães e, por algum tempo, ferida e doida de raiva, guerreara fazenda e roceiros, numa despedida heróica.
Veiga Miranda citou-a em São Paulo (Mau-Olhado, 132, São Paulo, 1925).
Maior Registro em “Folclore Nacional”, 18-19, sep. de Revista do Arquivo Municipal, CXIX, São Paulo, 1948.
Ver Onça da Mão Torta, Região Centro-Oeste. 

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Porca dos Sete Leitões
É uma superstição do Brasil meridional e central, de origem portuguesa.
Em São Paulo e Minas Gerais registrou Cornélio Pires: “A Porca dos Sete Leitões. Essa gosta mais de vivê rondando igreja na vila e as cruis da estrada, c’oa leitoada chorando atrais. - É má? - Cumo quê... - Inté que não... interrompeu a Cristina. - Essa sombração é muito boa; só pressegue os home casado que vem fora de hora pra casa...” 
(Conversas ao Pé do Fogo, 156, São Paulo, 1927).
Precisa-se a cidade de Itú como zona de conforto para a visagem: “Contava-se naquela época a aparição de uma porca com sete leitões” (O Saci Pererê, “Resultado de um Inquérito”, 88, São Paulo, 1917).
Karl von den Steinen encontrou-a em Cuiabá: “Aparição noturna, semelhante às mulas-sem-cabeça, e que se observa em ruas solitárias, é a porca com leitões. Trata-se, então, sempre da alma duma mulher que pecou contra o filho nascituro. Quando forem os abortos, tantos serão os leitões” (Antologia do Folclore Brasileiro, 111-112).
J. Leite de Vasconcelos registrou no Tradições Populares de Portugal, Porto, 1822: “Às
trindades, que é a hora aberta, é quase de fé que nas encruzilhadas se vê coisa ruim, na forma de uma porca com bácoros” (pág. 298), nota das Superstições Populares do Minho, de Dona Maria Peregrina da Silva, (idem, 313-314). “O diabo aparece pelos corgos (ribeiros), em figura de uma porca com sete leitões (Mondim da Feira). Em Resende dizia-se que no sítio do Boqueirão do Paço aparecia uma porca ruça com uma manada de sete leitões ruços, e que esta porca era o diabo”. 
A porca, símbolo clássico dos baixos apetites carnais, sexualidade, gula, imundice, surge
inopinadamente diante dos freqüentadores dos bailes noturnos e lugares de prazer. Muitos
notívagos, na França do sul, têm tido esse encontro com “une grosse truie, qui apparaissait, parfois, devant les libertins qui sortaient du cabaret”, como anotou Fréderic Mistral (Mes Origines Mémoires et Récits, 37, Paris, 1927).
Ocorre, vinda da Espanha, na Venezuela (Gilberto Antotinez, “La Puerca de los Siete Lechones”, El Nacional, Caracas, 13-7-1947). 
Ver Porco Preto, Região Sul.



Dicionário do Folclore Brasileiro - Câmara Cascudo, Rio de Janeiro: Ediouro Publicações S.A. sem data
 
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