VIDA SOCIAL: O Adulto
O Compadrio
...
Uma das formas pela qual os moradores da comunidade demonstram sua solidariedade é o compadrio. Verdadeira instituição, paralela à da família, chegando às vezes a entrelaçar um número bem maior de membros através do “parentesco pelo coração” do que pelo do sangue. Há provas na comunidade de que os liames afetivos que prendem um compadre ao outro são por vezes, em certo aspecto, tão fortes como aqueles que unem a irmãos. Há também casos em que os irmãos são entrelaçados pelos liames do compadrio. È tão importante este tipo de relações que o próprio tratamento entre eles se modifica. Deixam de se tratar apenas pelo nome, mas antepõe sempre o de compadrio.

Dorgival pediu para seu irmão Júlio batizar sua filha Helena. A partir do dia do batizado passaram a tratar-se por compadre. Certa vez, perguntamos pela saúde de Dorgival que havia cortado o pé na lagoa do arroz. Júlio respondeu-nos: “O compadre Dorgival tá melor, sim sior”.
O tratamento continua assim respeitoso mesmo que venha a falecer o afilhado.

Certa vez, vimos um afilhado fumando na frente de seu padrinho, indagamos a razão: “Ué foi o padrim que deu órde, só depois que deu órde eu comecei a tirá minhas fumaçada perto dele”.

É comum o uso de luto durante três meses, por causa do falecimento de um compadre, cujo compadrio data de vários anos.

Tipos de compadre
Na comunidade há dois tipos de compadres: o da igreja e o da fogueira.

Compadre de igreja é aquele que leva a criança, o afilhado para receber na igreja o sinal de iniciação – o batismo na igreja católica romana. Mais raro é o da confirmação, isto é, de crisma. Entre os moradores mais pobres só há compadres de batismo, de crisma só alguns poucos casos, já entre os mais ricos há também os padrinhos de crisma, que em tudo se comportam de maneira idêntica aos padrinhos de batismo.

Desde o começo em que os padrinhos, defronte do sacerdote apresentam o “pagão” para ser batizado, passam a tratar e a serem tratados por compadres. É costume os padrinhos irem à casa dos pais buscar a criança e levá-la à igreja. Apresentam-se apenas padrinhos e a criança. Depois que o padre põe os santos óleos, voltam para a casa dos pais da criança, onde uma pequena festa terá início com a entrada dos compadres e afilhados. Estes entregam a criança aos pais dizendo mais ou menos estas palavras: “compadre, aqui está nosso afilhado fulano, nós levamos pagão e agora batizado está”. Trocam abraços, bebericam algo, há alegria e festa. Mesmo nas casas pobres há sempre algum regozijo porque os padrinhos em geral ajudam promover um beberete qualquer ou algum “de cumê”, pagam o “mijo do afilhado”. 

Compadre de fogueira
Este não há criança a ser batizada, são apenas compadres, passam a tratar-se respeitosamente por tal. Não há apenas compadres de fogueira, há também tios e sobrinhos, pais e filhos de fogueira. Basta que um afeto forte os aproxime para que no dia de São João, ao saltar a fogueira, façam antes um juramento e a seguir saltem em cruz três vezes a fogueira. Desse momento em diante passam a tratar de acordo com o que adrede ficou combinado.

O juramento que precede ao salto da fogueira é o seguinte:
“Eu juro por São João, São Pedro e São Paulo e todos os santos da corte do céu”. A seguir saltam a fogueira dizendo:

São João dormiu
São Pedro acordô,
Vamo sê cumpadre
Que São João mandô.
Repetindo três vezes de cada lado passam a tratar-se de compadres ou tio e sobrinho, pai e filho, etc.
Quando tal não se dá por ocasião do dia de São João o fazem então na fogueira do dia de São Pedro, último santo junino a ser festejado. No juramento, o primeiro a ser invocado então é Pedro e a quadrinha repetida é:
São Pedro dormiu
São João acordô,
Vamo sê cumpadre
Que São Pedro mandô.
Quando é um menino que convidou uma pessoa adulta para ser seu padrinho o juramento é o seguinte: “Eu juro por São João, por São Pedro e São Paulo e todos os santos da corte do céu que o sinhô vai sê meu padrim e eu vô sê seu afilhado que São João mandô”. Saltam a fogueira, repetem a quadrinha, o afilhado repete três vezes “vai sê meu padrim” e o padrinho “vai sê meu afilhado”.
Muitas vezes, um menino não tem mais padrinho porque este faleceu, arranjam-no na fogueira e as relações passam a ser respeitosas.

Certa vez vimos uma mocinha negra aproximar-se de Mané do Dores dirigir-lhe o seguinte pedido: “a bença meu pai”. Estranhamos por causa não apenas da cor diversa, perguntamos ao Mané do Dores, este explicou: “é minha filha de fogueira. Aqui é a única pessoa a quem ela obedece porque é desabusada com todo mundo, mas é minha filha de fogueira, falo com ela e ela atende”.

Há muito respeito entre os compadres quer de fogueira, quer de igreja. Tão grande é o respeito que certa vez na cidade houve muito comentário porque uma jovem comadre de fogueira de José do Eduardo, com ele se casou. Maior celeuma na cidade o casamento de Dandinha com Joca, ambos viúvos, porém compadres. Há como que um caráter de incesto em tais casamentos entre compadre e comadre. Aliás, uma das maneiras de uma senhora casada livrar-se do assédio de algum moço dado a conquistador é convidá-lo para batizar um filho, enfim tornarem-se compadres.
A Alzira namorou Juquita quando ambos eram solteiros. Este vai para Recife tentar a vida. Alzira casa-se com o velho Gabriel. Passados alguns anos Juquita volta para fixar residência em Piaçabuçu, e chega mesmo a fazer proposta para Alzira, que finalmente o convida para batizar Neusenice. Depois do batizado, quando voltavam da igreja, Tônha comentou: “Só assim a Zirinha vai se vê livre do Juquita, só assim ele não vai dá mais em cima dela, vê lá si ele vai querê que ela vire mula sem cabeça quando morrê, cruiz credo si ele gosta mesmo dela não vai querê que vire João da Lavina, cruiz credo vê lá, cumpadre cum cumadre num tem perigo, tá besta m’ermão vira fogo-corredô, é iguá a mula-de-padre”.

O papel do compadre
Formalmente, o papel do compadre é o de substituir os pais na falta destes. Em geral os padrinhos são conselheiros de seus afilhados. Quando falece um dos compadres, em geral a viúva passa a aconselhar-se com o compadre mais experiente. Há compadres que acabam tomando conta dos negócios de sua comadre, até que ela se case novamente ou um de seus filhos possa tomar a direção da casa.

O padrinho fica obrigado a ter atenções com seu afilhado e isto se reflete sempre nas relações dos compadres. Alguns padrinhos chegam a chamar a atenção de seus afilhados, às vezes rispidamente, e os pais aceitam porque eles sabem que tal é para o benefício do seu filho.

A escolha do compadre é em geral feita por causa dos laços de amizade que existem entre vizinhos, parentes, amigos. Nestes casos quase sempre interfere pura e simplesmente a amizade, a afetividade.

A procura de um compadre às vezes se revela por parte do pai mais pobre o desejo de que seu filho tenha mais elevado o seu “status” social, escolhendo para padrinho uma pessoa importante e de destaque social ou econômico. Esta razão é muito comum, dela tirando partido o pobre, bem como o “grandola”, o rico, o importante. Este se aproveita de tais relações de compadrio para finalidades políticas. Em geral o “Coronel”, o chefe político local é compadre de muita gente pobre e simples. Há uma troca de favores. O compadre pobre busca no compadre rico um apoio, proteção, ele o aconselha acerca de qualquer negocio, ele é que o livra da perseguição da polícia, ele é que no caso de dúvidas ou brigas por causa de terras ou criações vem dirimir questões. Em troca o compadre rico recebe o voto certo do compadre pobre e de todos os seus familiares e quase sempre presentinhos quando este vem a cidade. Uma das obrigações que o afilhado não deixa de cumprir é passar na casa do padrinho para pedir-lhe a benção, quando vem da roça.

No passado, os melhores capangas, os de confiança eram os compadres do “manda-chuva” do lugar. Capanga que era compadre podia perpetrar qualquer crime que jamais iria para a cadeia. Um coronelão acoitava em seus feudos o cangaceiro do seu amigo chefe político doutro lugar, porque algum dia poderia também precisar enviar algum compadre seu para ali ficar acoitado. O compadrio favoreceu os coiteros de cangaceiros, de capangas, porque para um compadre “é preciso fazer tudo”. O compadrio é uma das formas mais vivas da solidariedade humana ainda existente na comunidade de Piaçabuçu.
Em conclusão, o compadrio exerce a função de proteção mútua.

.
..
Escorço do folclore de uma comunidade  – Alceu Maynard Araújo in Revista do Arquivo Municipal CLXVI – Departamento de Cultura da Prefeitura do município de São Paulo, 1962
...
Terra Brasileira Volta Vida Social Volta ao Topo O trabalho