Os Italianos: Histórico
 

Em 1886, o governo da província de São Paulo já tinha encontrado um meio efetivo de fornecer um auxílio integral aos imigrantes, cujas conseqüências foram quase imediatas.
Quando os fazendeiros se viram finalmente confrontados, especialmente em 1887, com fugas em massas de escravos e a ameaça de desordens maiores, eles foram perfeitamente capazes de substituir rapidamente sua população de escravos, cada vez mais indisciplinados, por imigrantes italianos. Até maio de 1887, entre 60.000 e 70.000 imigrantes tinham sido empregados em estabelecimentos agrícolas em São Paulo. Esse número já excedia os 50.000 escravos que, segundo se estimava no período, eram utilizados nas fazendas de São Paulo.
A política imigratória permaneceu essencialmente a mesma até a I Guerra Mundial. O programa de imigração permitiu aos fazendeiros paulistas não somente abolir a escravidão sem muitos incômodos, como também criar as condições para sustentar a expansão da produção cafeeira – o que foi favorecido, inicialmente, pelos altos preços do café. Entre 1888 e 1902, o número de cafeeiros plantados em São Paulo aumentou de 221 milhões para 685 milhões.
 
Embarque de imigrantes
italianos para o Brasil,
por volta de 1910.
Nem todos, porém,
puderam compartilhar
da mesma esperança,
quase sempre frustada,
por uma vida melhor.
Candidatos a imigração
barrados na hora da partida
por não preeencher
requisitos exigidos.

Os fazendeiros tiveram sorte quanto à coincidência da crise de mão-de-obra em São Paulo com um período crítico da economia italiana. A competição desigual de cereais norte-americanos, mais baratos nos mercados italianos, somada a contínuos apuros da agricultura italiana, criou uma pronta oferta de imigrantes desesperados. Durante os últimos anos da década de 1880, agentes do Brasil pululavam em Veneza e outras partes do Vale do Pó, estimulando “uma espécie de febre”, que levaria inúmeros trabalhadores agrícolas a partirem para o Brasil, na “esperança de lá encontrarem a terra prometida”, como escreveram os funcionários italianos de Treviso1. Alguns desses candidatos à emigração até viajaram a pé, cruzando a maior parte do norte da Itália sob um rigoroso inverno, para tomar os navios que em Gênova prometiam passagens grátis para Santos. Mas o destino a que os imigrantes estavam fadados no Brasil era praticamente tão sombrio quanto o que tinham deixado para trás. Eles eram trazidos ao Brasil para um único propósito: fornecer mão-de-obra barata para as fazendas de café. Como observou um deputado de São Paulo, logo depois da abolição: “precisamos de braços (...) no intuito de aumentar a concorrência de trabalhadores e mediante a lei da oferta e procura, diminuir o salário”2. O Secretário da Agricultura não era menos franco ao descrever a resolução do governo de importar trabalhadores em tais quantidades, como afirmou: as fazendas se tornariam “bastante saturadas, a ponto de estabelecer o equilíbrio entre a oferta e a procura de trabalhadores”. E acrescentou, de maneira igualmente cândida, que este método era muito mais prático do que a coerção que, “além de contrária à liberdade individual (...) produzirá efeito diametralmente oposto, criando por parte dos governos dos países emigrantistas, proibição à vinda de seus nacionais”3.
Manter baixos salários por este método exigiu um elaborado sistema que fosse capaz de suprir um fluxo contínuo de mão-de-obra européia para os cafezais, considerando o grande número de trabalhadores que deixavam as fazendas e a expansão das áreas cultivadas.

Essa política era, entretanto, apenas parte do sistema paulista. Apesar das afirmações oficiais, a coação por parte do Estado e a violência eram partes integrantes da vida rural, às vezes para manter colonos nas fazendas, porém mais comumente para abafar greves e desordens intermitentes e lembrar à população trabalhadora quem controlava os meios para exercer a violência.
Os imigrantes estavam à mercê dos proprietários das novas fazendas do Oeste paulista – um grupo que combinava, de maneira notável, alguns padrões de comportamento moderno e capitalista, visando o máximo de lucro.
Estar completa e totalmente subordinado a tais homens não era o mais feliz dos destinos, especialmente quando se considera que a estrutura da vida rural em São Paulo pouco ou nada restringia o poder – às vezes literalmente de vida ou morte – que o fazendeiro exercia sobre os seus colonos. “Achar um patrão humano e razoável”, concluiu um funcionário do governo italiano, Adolfo Rossi, em 1902, era “uma combinação muito rara, algo como ganhar um prêmio na loteria”4
Na apropriação do excedente criado pelos imigrantes, os fazendeiros eram limitados apenas por sua imaginação. Os relatórios da época estão repletos, por exemplo, de inúmeros casos de multas arbitrárias lançadas contra os colonos como método rápido para reduzir os seus salários. “Vendas” da própria fazenda, confisco diretos, pesos e medidas ilegais e o mero não-pagamento de salários eram mecanismos pelos fazendeiros com considerável freqüência. Quase todas as fazendas tinham o seu próprio bando de capangas, encarregados de executar as vontades do fazendeiro e fiscalizar, entre outras coisas, a entrada e saída dos colonos nas fazendas. A violência física era um componente fundamental do sistema; os relatórios consulares e os jornais da colônia italiana da época relatam centenas de casos. É desnecessário frisar que os imigrantes não dispunham de recurso legal nesses casos. Por exemplo, um funcionário italiano chegou ao extremo de declarar, em 1908, que não acreditava “que os anais judiciários do Estado de São Paulo mencionem um caso, um único que fosse, de fazendeiro que tendo espancado um colono tenha sido punido legalmente”5.
 

Hospedaria dos Imigrantes,
construída em 1886.
Sobreviveria ao fim da
Sociedade promotora de
Imigração em 1895.
 

Arquivo Edgard Leuenroth
(Unicamp)

Hospedaria dos Imigrantes
Verdadeiro mercado
de trabalho onde se
firmava contratos entre
imigrantes e fazendeiros.

Arquivo Edgard Leuenroth
(Unicamp)

Embora os imigrantes tivessem provavelmente melhores condições de alimentação em São Paulo do que na Itália, suas moradias eram tão precárias como as de lá e as condições sanitárias quase com certeza piores. Isolados, desumanizados, sem escolas e sem as compensações e o estímulo oferecidos pela vida comunitária na Itália, não é de surpreender que os imigrantes tenham impressionado muitos observadores pela regressão cultural que haviam sofrido. Outros ficavam abismados com a grande incidência de doenças mentais e alcoolismo.
O sistema parece ter sido elaborado para manter os trabalhadores no mero nível de subsistência e, apesar de alguns imigrantes chegarem a acumular poupanças, isto só acontecia em circunstâncias bastante especiais, tais como em locais favorecidos ou famílias com grande número de trabalhadores capacitados. Certamente a obtenção da propriedade da terra pelos imigrantes não era incentivada. Em 1896, Campos Salles, então presidente (governador) de São Paulo, afirmou que “fazer os estrangeiros proprietários do solo paulista não nos convém”6. De fato, poucos conseguiram ser proprietários. Em 1905, os italianos representavam 9% dos proprietários de terras, mas suas propriedades correspondiam a menos de 4% da terra – isto durante uma época em que formavam um terço ou mais da população do Estado. Em outras palavras, isso significava um pouco mais de 5.000 proprietários italianos em uma população italiana de talvez 800.000.
Um dos indicadores mais significativos de quanto eram desfavoráveis as condições para os imigrantes em São Paulo é o grande número dos que deixaram o Estado, indo geralmente para a Argentina ou regressando a Itália. As estatísticas oficiais mostram que as cifras de saída chegavam quase à metade das de entrada7, não sendo isso, porém uma imigração sazonal como a da Argentina, já que a cultura do café não se prestava a esses arranjos. Aqueles que deixavam São Paulo partiam, como constata Rossi, “desesperados”.Durante a época, os observadores europeus (oficiais ou não), em sua grande maioria, concluíram que, embora fosse necessário e até desejável emigrar da Itália, não o era fixar-se nas fazendas de São Paulo.
O governo italiano, finalmente, foi levado em 1902 a proibir a emigração subsidiada para São Paulo. A proibição foi burlada de várias maneiras, mas mesmo assim, reduziu substancialmente o número de italianos importados para trabalharem nas fazendas. Por algum tempo, os fazendeiros e seus aliados voltaram-se para fontes ibéricas (Portugal e Espanha) de mão-de-obra barata. Em 1910, porém, o governo espanhol seguiu o italiano, proibindo a emigração subsidiada de seus cidadãos. São Paulo, então, se empenhou seriamente na importação de trabalhadores japoneses, e, em anos posteriores, a migração interna serviu para assegurar mão-de-obra barata para as fazendas.
 

"As roças de subsistência eram
(...) regularmente distribuídas,
em proporção ao número de
pés tratados pela família.
Por fim, alguns fazendeiros
começaram a introduzir
uma nova forma de remuneração,
um sistema misto de
remuneração por tarefa
e por medida colhida,
o colonato, fórmula que
prevaleceria nas fazendas
cafeeiras desde os anos
1880 até os anos 1960"
(Verena Stolke).

Cena de colheita de café
Arquivo Edgard Leuenroth
(Unicamp)

Os imigrantes responderam de diversas maneiras a sua situação. Há, por exemplo, dezenas de casos em que colonos, agindo individualmente ou em pequenos grupos, assassinaram fazendeiros ou seus administradores. Um dos mais famosos incidentes ocorreu em 1901 quando Francisco Augusto Almeida Prado, percorrendo seus cafezais descuidadamente, sem a proteção de seus capangas, foi assassinado por seus colonos que o esfaquearam e esquartejaram com machadinhas e enxadas. Fato semelhante havia acontecido a Diogo Salles, irmão do Presidente da República (Campos Salles), no ano anterior. De modo geral, os motivos para tais incidentes eram individuais, como o caso de Salles, que envolveu uma tentativa de estupro da irmã do assassino. Contudo, o incidente é indicativo tanto das formas extremas assumidas de exploração quanto das tensões subjacentes. Outros casos surgiram de questões mais amplas. No assassinato de Prado, por exemplo, a causa imediata teria sido a punição que ele havia imposto a seus colonos por terem se recusado a apagar um incêndio na fazenda de um de seus parentes.
Ultrapassar a resistência individual encontrava obstáculos imensos e os fazendeiros faziam o que podiam para sufocar qualquer mobilização. Por exemplo, todas as sociedades ou associações de trabalhadores eram proibidas, e contatos com o mundo fora da fazenda, estritamente vigiados. Apesar do controle severo, os trabalhadores não apenas se mostravam constantemente inquietos e algumas vezes violentos, como também realizavam greves com alguma freqüência.
As primeiras greves rurais ocorreram ainda no Império, tornando-se mais freqüentes nos anos 1890 e chegando a atingir várias dezenas de ocorrências até 1913.
Essas greves, em sua maioria não se alastravam para além dos limites de cada fazenda, e tinham geralmente como motivo: 
1) não pagamento dos salários,
2) tentativas de reduzir salários, ou
3) multas pesadas e arbitrárias.
Considerando-se a relação de forças no meio rural de São Paulo, nesse período, está longe de ser surpreendente o fato de que a maioria das greves dos colonos tenha fracassado – e isto para não falar da ajuda generosa da força pública aos fazendeiros, quando necessário.
Houve, contudo, algumas greves de tamanho considerável. Em 1911, cerca de 1.000 colonos de meia dúzia de fazendas, na região de Bragança, ficaram paralisadas por vinte dias e conseguiram um pequeno aumento de pagamento. No ano seguinte, trabalhadores de mais doze fazendas da região de Ribeirão Preto entraram em greve e também conseguiram um pequeno aumento salarial. A maior greve do período ocorreu na mesma área em 1913. Ela mobilizou de 10.000 a 15.000 trabalhadores, mas, perante a intransigência dos fazendeiros, resultou em derrota total.
Em alguns casos há indicações de greves cuidadosamente planejadas pelos colonos. Em outros, a ação surgiu espontaneamente. Diante das inevitáveis acusações, de fazendeiros e seus aliados, responsabilizando os “agitadores de fora” pelas greves, a observação mais pertinente talvez tenha sido a do jornal anarquista La Barricata (16/6/1913): “Pelo grande número de greves que explodem em muitas fazendas, vê-se que estão cheias de agitadores, que são os próprios colonos, os quais estão agitadíssimos pelas revoltantes condições em que se encontram”.
 

Escola de um núcleo
colonial de imigrantes
 

Arquivo Edgard Leuenroth
(Unicamp)

Nem todos os trabalhadores que fugiram das condições existentes nas fazendas deixavam o país. Um número considerável foi para a cidade de São Paulo, onde eram pagos geralmente em nível de subsistência, aglomerados em miseráveis cortiços, destituídos de qualquer legislação social efetiva, e sujeitos a crises periódicas de desemprego.
Essa primeira geração da classe operária paulistana era composta quase totalmente de imigrantes europeus. No começo do estimava-se que 80% ou mais dos operários em São Paulo eram italianos. Mesmo em 1920, alguns anos após o declínio da imigração européia, os estrangeiros permaneceram como maioria absoluta da população adulta da cidade.
A imagem bastante difundida de uma classe operária imigrante, que teria chegado a São Paulo possuindo alta qualificação industrial, sofisticação política e experiência militante, não corresponde muito bem aos fatos. Apesar de alguns artesãos e outros trabalhadores urbanos terem, sem dúvida, emigrados para São Paulo, e um punhado de militantes terem tido alguma experiência política nos países de origem, a entrada de tipos como esses não foi encorajada, e parece claro que a vasta maioria era composta de homens e mulheres vindos de áreas rurais.

1. Statistica della emigrazione avvenuta nell ano 1888, pp. 159 e 197.
2. Anais da Câmara, 1888, V, p. 323.
3. Secretaria da Agricultura de São Paulo, Relatório, 1896, p. 80.
4. “Condizioni dei coloni italiani nello Stato di San Paolo” in Bollettino dell’emigrazione, 1907, n.o 7, p. 34.
5. S. Coletti: “Lo Stato di S. Paolo e l’emigrazione italiana” in Bollettino dell’emigrazione, 1907, n.o 15, p. 8.
6. Fanfulla, 4, 5 e 11 de setembro de 1896.
7. Secretaria da Agricultura de São Paulo, Relatório, 1906, quadro IX.



Extraído do texto "Imigrantes"de Michael Hall in Trabalhadores, Publicação mensal do Fundo de Assistência à Cultura, Prefeitura Municipal de Campinas, 1989.
Michael Hall - Professor de História da Unicamp e autor, junto com Paulo Sérgio Pinheiro, de A Classe operária no Brasil: documentos, 2 vol. (Alfa-Ômega, 1979 e Brasiliense, 1981).
 
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